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PERFIS

MEDO DE VIVER

ENTRE A ANGÚSTIA E O ALÍVIO

SUPERAÇÃO E CONTROLE

TRÊS HISTÓRIAS SOBRE DEPRESSÃO

OBSERVAÇÃO: nomes e vozes dos personagens foram alterados para preservar a identidade das fontes.

Perfil 1

Medo de Viver

Por Karol Gomes

Ana Júlia é uma das poucas pessoas dispostas a falar sobre depressão. Expor o que viveu ainda na infância com a doença não é tão fácil. Aos 12 anos, o divórcio dos pais foi o motivo pelo qual tudo começou, ela não entendia direito os sintomas da doença, porém a professora da escola identificou algo errado quando ninguém mais percebeu. A mãe trabalhava o dia inteiro, o pai morava em outra casa, a manhã na escola e dormir à tarde era o cotidiano de quem não aguentava passar pelo dia.

 

Neste período, o grupo pedagógico escolar encaminhou-a para o primeiro psicólogo. Passou um ano em terapia contínua com conversas semanais, todas com o objetivo de encontrar uma maneira de superar o que sentia, para assim, quem sabe, pôr a cabeça no travesseiro e dormir à noite inteira. Dormir. A depressão não permitia, e as dificuldades para adormecer e manter o sono eram constantes. No “modo zumbi”, ela tentava decidir quando estava totalmente acordada ou não.

 

Após um ano de altos e baixos, as conversas não eram mais suficientes e a situação ia piorando progressivamente. O primeiro encaminhamento para o psiquiatra apareceu e a mãe não aceitou a história de ter uma “filha louca”.

“Isso é porque você não se exercita”

“Isso acontece porque você não vai à igreja”

As palavras ditas pela mãe afetaram a criança de 13 anos. A menina foi à consulta e disse ao psiquiatra não entender o porquê de estar ali, e provavelmente a psicóloga havia se enganado em tê-la mandado para lá. “Nem estou tão mal assim”, ela repetia mais para si mesma do que para a psiquiatra. Depois disso, não fazia sentido voltar aos encontros com a psicóloga, evitava a chance de ser direcionada ao psiquiatra outra vez. Mesmo não estando bem, ela não conseguiria olhar para o médico sem o apoio da família. Há poucos meses, o pai tomou conhecimento da doença da filha. A mãe finalmente contou. Quando o resto da família soube, todos viraram especialistas no assunto e cada um trazia uma cura diferente.

 

Todo ser humano tem um vazio a ser preenchido. Quando alguém tem depressão, esse vazio é ainda maior e é natural procurar novas formas de se preencher. A comida era onde Ana Júlia descontava suas frustrações. Com o passar do tempo, ela começou a engordar e o efeito inverso aconteceu. Ao invés de preencher o vazio, ela se sentia triste, frustrada e gorda. Em seguida, vieram os filmes e as séries. Meredith Grey e Cristina Yang, personagens da série Grey’s Anatomy, eram uma forma de sentir que havia alguém ali, mesmo não sendo pessoas com quem tinha conversas diretas, ajudava a passar o tempo de quem não tinha ninguém para conversar na vida real.

 

No ensino médio, as coisas pareciam melhorar, a depressão não é o tipo de doença que está ali com você de forma latente o tempo todo, conversar com as pessoas nesse tempo parecia ser menos desagradável. Os altos e baixos são frequentes na rotina. Alguns dias são bons e em outros ela se sentia automaticamente triste simplesmente por ter acordado e estar viva mais um dia. Fugir das aulas era uma solução para quem geralmente não aguentava ficar rodeada de pessoas. Até hoje multidões a assustam.

 


Sete meses se passaram até o assunto “psiquiatra” ser tocado novamente. Somente as sessões com a psicóloga não estavam ajudando. Havia chegado o momento de abandonar outra psicóloga. No ano seguinte, a situação se agravou outra vez, mesmo rodeada de amigos, a solidão era constante. O terceiro psicólogo entrou em cena no período de estágio num hospital.

 

Quando o terapêuta mudou o local de trabalho, ela parou de vê-lo. Quando entrou na universidade e aparentemente tudo ia bem, alcançou o limite e se perdeu novamente. Não se alimentava, não saia da cama, não fazia nada. A mãe dessa vez entendeu a necessidade de ajuda. A consulta com a psiquiatra foi marcada, os medicamentos prescritos.

 

Há oito meses a psiquiatra indicou a retirada de materiais de limpeza, cordas e qualquer objeto cortante de perto de Ana Júlia. Os pensamentos suicidas não permitiam, nem mesmo a visita ao pai policial, devido a presença  de armas em sua residência. Ana Júlia conta uma situação vivenciada na estação de metrô quando diversos pensamentos começaram a perturbá-la.

 

O metrô vinha e ela pensava o quanto seria melhor acabar com tudo naquele momento. Não havia sentido em continuar a vida. Fugir dos momentos ruins era a melhor solução. Se havia situações em que nem mesmo Ana Júlia se suportava, imagine quem convivia com ela diariamente. O olhar das pessoas muda quando descobrem alguém com depressão e isso não ajuda em nada. “Não seria melhor evitar tudo isso?”, ela acreditava. Evitar ter contato com os outros era a melhor solução para quem se sente um fardo. Mesmo sabendo que se isolar não era bom, Ana Júlia via nisso a melhor maneira de continuar.

"Para falar a verdade, eu tinha muito medo de viver"

No segundo ano do ensino médio, um momento bem ruim resultou na ida para a segunda psicóloga. A mãe começou a perceber alguma coisa errada, a filha não conseguia levantar da cama. Embora dissesse a todos os órgãos que eles iriam passar pelo dia, não era uma ordem obedecida pelo corpo. Os membros não ouviam e atendiam, levantar e passar pelo dia não era uma tarefa tão fácil.

Atualmente, as conversas com a psicóloga e as consultas com a psiquiatra para a realização do acompanhamento tornaram-se permanentes. Com o uso de remédios, o sono melhorou bastante e os pensamentos suicidas tornaram-se menos recorrentes. As rodas de conversa na faculdade ajudaram a mostrar o quanto conversar com quem consegue entender o que você está passando é importante. Quando questionada se acredita na existência de cura para depressão, ela não sabe dizer. Talvez seja possível, mas até agora não viveu um momento em que estivesse 100% bem e ela não vê como isso pode acontecer.

 

Hoje, aos 19 anos, ela entende a importância dos amigos nesse processo, nos piores momentos eles estavam ali. Após o início do tratamento com o psiquiatra, eles perceberam que houve melhora, Ana Júlia sorri mais. A cada dia ela vem caminhando, tentando encontrar uma maneira de viver um dia após o outro, às vezes tendo bons ou maus momentos, mas assim a vida continua. E ela continua.

PERFIL 2

Entre a angústia e o alívio

Por Débora Nogueira

Os olhos verdes encaram algo no horizonte enquanto as mãos gesticulam ao falar. Naquela manhã quente de uma quarta-feira, João Ribeiro revela como foi sua experiência com a estigmatizada doença que tanto o afetou. Foram longos onze anos convivendo e tentando vencer a depressão. João até hoje não sabe exatamente o porquê de ter desenvolvido o transtorno, se fora o estresse ou as cobranças no trabalho. Ele apenas garante que só “quem está sentindo é que sabe”, ninguém mais.

 

Hoje João tem 54 anos, que completou no mês de junho. Vindo de uma cidade no interior do estado, ele passou a morar na capital muito jovem, mas nunca tivera nenhum episódio depressivo. Foi só depois dos 40 anos que a depressão passou a fazer parte de sua vida. Não é que a doença surgira repentinamente como uma dor de cabeça, mas foi essa a época na qual ele percebeu que havia algo errado.

 

Foi através das conversas com uma amiga que Ribeiro decidiu buscar ajuda. Da psicóloga indicada pela colega, ele foi direcionado à um tratamento especializado no Centro de Apoio Psicossocial (CAPS). João conta nos dedos enquanto tenta recordar exatamente por quantas triagens passou: foram três, duas com psicólogas e uma com psiquiatra. Ao contar o resultado das triagens ele até ri, como quem ri de uma ironia. “Em todas as triagens eu era aprovado ‘negativamente’, quer dizer, era aprovado com depressão”. Segundo o resultado dos especialistas, ele já estava com depressão aguda, o tipo mais grave.

 

Uma das frases mais repetidas por João é “eu não conseguia dominar”, o que revela o sentimento de inércia diante da doença, que passa, pouco a pouco, a exercer poder sobre a mente dos depressivos. Não é drama, bobagem ou preguiça.

 

 

Com o decorrer dos anos a depressão passou a afetar a vida social de João Ribeiro, principalmente sua relação com a sua esposa e os quatro filhos adolescentes. Por um lado ele admite que seu comportamento podia ser nocivo para aqueles ao seu redor. Contra a própria vontade, se tornava chato ou cobrava demais determinadas coisas. Nem ele mesmo conseguia entender os próprios pensamentos. Mas por outro lado, faltava compreensão por parte dos membros da família, os quais, segundo ele, faziam cobranças, para que ele desse fim a uma doença que existia apenas em sua cabeça.

 

Ribeiro recorda um episódio que o marcou profundamente. Ele tenta puxar pequenos detalhes da memória, mas não consegue. Talvez por ser algo dolorido, ou porque o fato em si é mais forte do que seu contexto. João só lembra que conversavam, ele e um dos filhos, não sabe dizer sobre o que falavam. Até que o adolescente o chamou de louco.

 

 

 

 

 

 

Para evitar situações como essa, João reservava o conhecimento sobre seu transtorno à poucos, apenas os mais íntimos. Seu núcleo familiar, os pais, os irmãos, alguns colegas do trabalho. Em momento algum ele cita algum amigo que soubesse da sua condição. Ele evitava contar aos outros porque temia ser tratado como um "doido".

 

A relação com os filhos e seu casamento aos poucos se deterioraram. João Ribeiro e a esposa se separaram eventualmente, mas continuaram a viver na mesma casa por um período. Pouco depois João se mudou para o lar dos pais no interior do estado, aquela lá do começo, de onde ele viera. É lá onde continua a viver hoje, assim como a maior parte de seus parentes. É lá também onde trabalha e continua a luta diária contra possíveis recaídas.

 

Se em casa a convivência era difícil e as crises depressivas recorrentes, no trabalho João se sentia diferente. Ele era alegre, simpático, não aparentava estar psicologicamente doente. Para seus colegas de trabalho foi uma surpresa saber que ele estava com um quadro de depressão.

 

Ribeiro trabalhava como garçom em um restaurante na época em que descobriu o transtorno. Em nossa conversa ficou perceptível os sentimentos conflitantes a respeito do trabalho. Ao indagar se a doença chegou a atrapalhá-lo no emprego, ele respondeu que sim, o atrapalhou. Em alguns momentos, a antipatia do que fazia gerou insatisfação. Embora executasse as atividades diárias perfeitamente, não suportava mais trabalhar nessa área. Em nenhum momento João recebeu algum tipo de assistência no emprego. Hoje ele não trabalha mais como garçom, e parece satisfeito com o que faz.

 

Foram necessários oito anos para Ribeiro sentir o alívio decorrente do tratamento. Lá no princípio, há onze anos, ele passou a fazer terapia individual e em grupo o que o ajudou a perceber que ele não estava sozinho. Além da terapia, ele tomava quatro tipos de medicamentos. Hoje toma apenas um, para ansiedade, e é acompanhado a cada quatro meses por um psiquiatra.

 

Hoje João Ribeiro se sente bem em casa e seu relacionamento os filhos se restabeleceu. Apesar de todos os males, os momentos de angústia, estresse e ansiedade, ele consegue enxergar o outro de toda a sua vivência ao longo dos difíceis onze anos. Agora ele se sente mais forte, e diz que os pensamentos não o controlam mais. Sim, há períodos na qual o choro ameaça voltar, ou a aflição se apossa de uma parte da sua mente. Mas o choro não vem, ele respira fundo, a sensação se esvai.

“Na terapia a gente adquire o conhecimento de algumas coisas em relação ao que nos acontece, que não é só com a gente, que não sou só eu que estou passando por aquele momento”

“Meu filho me chamou de doido e aquilo me magoou muito no dia, até por um certo período. Eu não levei muito à sério, não fiquei com rancor. Mas essa é uma memória que a gente não vai apagar”

PERFIL 3

Superação e controle

Por Felipe Klisman

Joana Silveira é casada e mãe de três filhos. Ela sempre morou próximo aos pais até se mudar para a casa própria em 2013. Quando chego à casa dela, me deparo com a situação que se repete aos fins de tarde nos últimos anos e que a incomoda bastante. A dona de casa  estava sozinha com a filha de três anos, o marido estava trabalhando, enquanto a filha de 14 anos ainda estava na escola e o filho mais velho "não para em casa."

 

Ela me convida para sentar nas cadeiras da cozinha para tomarmos um café durante a conversa. Joana abre uma janela presente no local e a vista, pelo menos a meu ver, é simplesmente incrível: a uns três metros da janela existe uma linda vegetação à beira de um rio de águas correntes e, além disso, é possível ver ao horizonte um fascinante pôr do sol.

 

Porém, percebi o motivo dela se sentir incomodada: a paisagem e o horário lembravam o auge de sua depressão. O entardecer lembra a hora do dia em que a solidão é mais presente.A dona de casa já vivenciou duas sérias crises depressivas, sendo a última delas em 2014, após o nascimento da filha mais nova. Ela chorava facilmente ou sem motivo aparente, ficava no quarto sem querer falar com ninguém.

 

A filha mais nova tinha sete meses quando Joana procurou o psicólogo e foi diagnosticada com depressão pós-parto. Outros fatores contribuíram para agravar o momento depressivo. Joana se sentia distante dos pais, já que recorria à casa deles quando ficava sozinha durante o fim da tarde.

 

Enquanto conversamos, Joana entrega o celular para  a filha se distrair  e não atrapalhar os seus relatos. A garotinha brinca no jogo da “gatinha falante” enquanto a mãe me conta sobre a importância de ter procurado o atendimento com psicólogos, procedimento que nem todos os pacientes executam, seja por negligência ou por falta de conhecimento. Foram três meses em consulta com o psicólogo, duas vezes por semana em sessões de meia hora. Com o tratamento, Joana estava mais preparada para enfrentar a depressão e superar os momentos de tristeza.

 

Vejo que Joana vai se sentindo à vontade para falar sobre o tema.  Além da história de vida, ela conta os exemplos de pessoas próximas. Nesse momento, pede o celular para filha e promete devolver em alguns instantes. A dona de casa queria me mostrar a foto da neta de sua patroa. Olho para a foto e, aparentemente, vejo uma jovem feliz, sorridente e que, segundo Joana, é bem sucedida, tem um bom emprego e um bom casamento. Porém, ela ainda não me havia revelado o problema: a neta de sua patroa sofria com depressão.

 

A situação mais difícil era saber que a avó da jovem cobria a neta de críticas, por não aceitar que ela sofresse com a doença embora fosse bem sucedida. Para Joana, a depressão ser silenciosa é o que a torna pior, “ela age sem você nem perceber”. Além das sessões, o psicólogo de Joana lhe deu dicas de como diminuir a dosagem de medicamentos a partir de ações alternativas.

 

 

 

A noite chega e Joana pergunta se não me incomodaria caso ela fechasse a janela. Respondo que não teria problema algum. “Aqui tem muitos mosquitos. Eles invadem a casa da gente e passam à noite perturbando”, justifica a dona da casa ainda com receio que eu me incomodasse com a janela fechada.

 

Aos poucos as pessoas da casa retornam. O marido já chega em casa acompanhado do filho, e a jovem de 14 anos vêm logo em seguida reclamando que teve um dia cheio na escola. Pouco tempo depois me despeço e digo que já está na minha hora. As pessoas da casa me convidam para o  jantar. Agradeço e respondo que realmente tenho de ir. A dona de casa agradece pela tarde de conversa e por ter, pela primeira vez, conversado sobre o tema fora de uma sala de atendimento médico.

“Se eu me sentisse triste, ia caminhar na praia, olhar o mar, pular as ondas, conversar com alguém e não ficar em casa só. E era muito bom, me sentia muito bem. Quando me sentia triste, fazia exatamente isso”

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