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CRÔNICAS

Por Alexandre Valério Ferreira     

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     Jamile faleceu no seu vigésimo segundo ano de vida. Era uma terça-feira cinza e chata, como todas as outras. Ela partiu discretamente. Não se ouviram gritos. Ninguém chorou. Nem disse adeus a alguém e tampouco disseram a ela. As conversas estavam rarefeitas de palavras. Fracas, sussurradas, como se a vergonha da morte fosse mais dolorosa do que o fato em si.

 

     Quando o rabecão veio buscar a garota, os vizinhos apareceram aos montes. Temiam que fosse uma tragédia. Não foi morte matada, disse a perícia, confortando os curiosos. Menos mal, diziam entre si. Menos mal. O laudo do legista confirmou a morte por conta de uma forte tuberculose. No relatório, descreve-se em detalhes a anatomia enfraquecida do corpo da jovem. O médico marcara embaixo: “tuberculose ativa”. Ele destacou também inanição.

 

     O laudo, porém, não dizia que Jamile deixara de comer por vontade própria. Tampouco destacava que a fraqueza trouxe a infecção e não o contrário. A tuberculose apenas se apossara de um corpo já desarmado, entregue à derrota. Nenhum relatório explicava em detalhes o real motivo da morte: a depressão.

 

     Claro, não tinha como fazê-lo. Um exame físico não consegue diagnosticar um problema do íntimo. Existem sinais, porém, é necessário um estudo mais longo para triangular as informações e chegar à conclusão de que o indivíduo sofre de depressão. Isso não acontecera com Jamile. Nunca sequer visitara um psicólogo ou psiquiatra.

 

     O relatório do legista explicava detalhadamente a altura, o peso, a textura da pele e os hematomas de Jamile. Mas nada contou sobre as angústias diárias, a dificuldade em dormir, o isolamento e os machucados que ela desferia ao seu próprio Eu regularmente, entregando-se a uma dor que nunca se entregava. Nem mesmo descrevia as sensações que a depressão lhe causava, aquele estupor, aquela impressão de estar morta e viva ao mesmo tempo, aquela vida cinza e sem esperanças.

    

     A morte de Jamile não saiu no jornal. Sua história não foi contada em algum programa de TV. Nem mesmo foi contabilizada nos dados sobre mortes relacionadas à depressão. Afinal, nada se constava sobre a doença que sofria e o legista pouco empenho fez em analisar o caso a fundo. Depressão não é coisa de periferia. Além disso, havia coisas piores a investigar, como mortes por bala e faca.

 

     Nem o médico legista, nem o assistente social, nem a polícia, se informaram sobre a família de Jamile. Em nenhum relatório se dizia que seus parentes nunca aceitaram a depressão nela. Fingiam para si mesmos (e aos outros) que era apenas uma fase, um momento, ou talvez birra da jovem. Não reconheceram a tempo que a doença a ocupou por completo. Foram irresponsáveis e, dessa forma, condenaram-na à morte.

 

     Incrível se pensar que tantas pessoas moravam perto de Jamile, mas poucos sequer se lembravam do rosto dela. Nunca questionaram sua ausência. Nem mesmo agiram quando ela começou a parar de comer. Alguns reconheciam um quadro de depressão na garota. Mas, quem se disporia a ajudá-la? E o que dizer? Tentar se aproximar e perguntar sobre parecia algo extremamente constrangedor. Ficaram no “ah, que pena”.

 

     Naquele mês, 18 pessoas morreram de problemas relacionados à depressão. Alguns cometeram suicídio, outros se entregaram à uma doença infecciosa ou morreram de inanição. Jamile morreu de tuberculose. Estava entre os XX que o SUS contabilizou. Na maioria dos casos, eram pessoas da periferia. Nenhum deles tinha depressão, oficialmente.

 

 

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Vinte e dois

Crônica 1

Por Alexandre Valério Ferreira     

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     Tudo começou em 2010. Ela veio sem avisar. Não ligou nem mandou carta. Mas, quanto a essas acusações, ela nega com veemência. Diz que eu sabia de sua chegada e que paulatinamente me dera sinais de sua chegada. Também ressaltou que eu a queria presente. Fato este que nego. Independente do que houve, ela apareceu na minha vida e não tinha prazo para ir embora.

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     De começo, eu a rejeitei. Tentava fingir que ela não estava ali. Porém, ela insistia em comprovar-se presente. Ao me levantar, lá se estava ela a me observar. O café da manhã deixou ser um momento prazeroso por culpa dela, que estava sempre me importunando. Às vezes, eu deixava de comer para tentar fugir dela.

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     Era descarada e até ao banheiro me acompanhava. Trancava-me por horas. Sua presença era incômoda. Falava, falava e falava. Nunca me deixava em paz. Eu colocava fones de ouvido para isolá-la, mas não tinha jeito. Sua voz ultrapassava todas as barreiras físicas. Ela era realmente poderosa.

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     Também percebi que era ciumenta. Ela me queria somente para si. Nas festas, falava que o ambiente era chato e sempre me levava embora. As rodas de conversa perderam a graça por culpa dela, pois não se calava um minuto e me deixava surdo ao que os outros diziam. Eu estava sempre desatento, distraído por diálogos intermináveis com ela.

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     Gradualmente foi conseguindo espaço em minha vida. Ocupava minhas coisas e meus pensamentos. Nunca me deixava só. Sempre tinha algo para dizer. Ainda assim, a solidão era um sentimento cada vez mais intenso em mim. Em um dado momento da minha vida, éramos nós dois e ninguém mais.

 

     Ela dizia querer meu bem. Estava me protegendo de alguma coisa. Só não sabia do que. Reconheci um comportamento bipolar nela. Se em um momento me dizia para ficar isolado, em outro, me culpava por ser tão desagradável e antissocial. Ela sabia todos os meus defeitos e não tinha papas na língua para expô-los nos mínimos detalhes, o que me deixava angustiado.

 

     Percebi nela uma excelente habilidade de argumentar. Manipuladora como ela nunca vi. Sempre me convencendo de que sou inútil, desnecessário, fraco, desagradável. Ela me tornou agressivo e irritado. Ela me feria com as mais diversas infecções. Amava levar-me ao hospital. Acho que me acostumei com o sadismo dela.

    

     Com o passar de certo tempo, ela chegou a mim com uma estranha conversa. Chorando, sussurrou-me que o mundo era desagradável e as pessoas, cruéis. E a pior delas era eu. Mas havia uma cura, um tratamento revolucionário para a doença chamada “eu”: o suicídio. Aliviaria tudo, dizia. Nesse momento, senti que estava de fato no fundo do poço.

 

     Resolvi então procurar uma pessoa que ela odiava: o terapeuta. O psicólogo conversou comigo e me contou o passado dela. Fiquei estarrecido. Como era possível? Ela me enganara por anos! Deixou-me cego à realidade. A minha reação imediata foi expulsá-la de minha casa, porém, ela estava muito forte e eu nem sequer andar sabia mais.

 

     Então, veio outra pessoa odiada por ela: o psiquiatra. Este me entregou algumas muletas. Eram antidepressivos. Não me curariam, porém, me dariam estabilidade enquanto aprendia a andar com minhas pernas novamente. Era vergonhoso usar aqueles objetos de tarja preta. Senti-me para baixo nos primeiros dias, porém não desisti.

    

     Ser livre sempre envolve luta. A minha foi contra ela. Inúmeras vezes ela me deu rasteiras e acabei retornando para seus braços. Até nesses momentos ela não tinha misericórdia e me acusava de fraco. Precisei aprender a não escutá-la. Capacidade aparentemente inviável, descobri ser possível.

 

     Com o tempo, alcancei força suficiente para expurgá-la da minha casa. Foi a maior vitória da minha vida! Mas, como a realidade não é um mar de rosas, aqui e acolá, ela dá as caras. Sem ligar, para variar. Porém, as visitas dela são rápidas. Diz uma ou duas asneiras por algumas horas e depois sai com um comedido “tchau”.

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Quando ela chegou

Crônica 2
crônica 3

24 horas

Por Sabrina Teixeira

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Já são sete e cinco. Sempre começa às sete em ponto. O portão está fechado. Será que não vai ter? Que dia é hoje? Que horas são agora? Estou no local certo? Ufa. Chegaram. O portão aberto me traz alívio. Já me sinto melhor. Não o suficiente para interagir com outras pessoas. Me sento próximo à porta. Quero participar, mas não tanto. Ainda assim me inscrevo para a terapia do espelho. Preciso desse momento antes de terminar o dia. Acordei pensando em não vir hoje. Estava bem. Consegui levantar sem dificuldade. Fui trabalhar. Mas então eu desabei. Não teve uma razão específica. A angústia me toma sempre sem avisar.  Se mandasse aviso, talvez me sentisse mais preparado para lidar com ela. Então vim. Não gosto da necessidade de necessitar. Mas só aqui encontro conforto. Em casa há muito barulho, muito movimento, muito tudo. As cobranças da família me afastam. Esposa, filhos, trabalho. Responsabilidades que às vezes são demais para suportar. Então aqui eu relaxo. Sem julgamentos, sem preocupações. As paredes verdes, já tão familiares, abrigam os mais sombrios de meus sentimentos. São elas as testemunhas sempre presentes. Elas presenciam meu desnudamento. Cercado por elas me sinto desobrigado a manter a fachada. Aqui eu me permito. Os companheiros de irmandade também são importantes. Entendem a sensação de vazio. Pois possuem eles próprios seus buracos na alma. Rasgos. Rachaduras. Fendas. Fissuras. O vazio não tem forma. Nem mensuração. Não tem como comparar. Não tem nem ao menos como explicar. Mas há a identificação do sentimento. Eles também sabem como é. E ao ouvir o relato, há a identificação. Eu sou eles e eles sou eu. Somos todos danificados, julgados e classificados. Aqui somos autorizados a apenas ser. Primeiro a oração. Depois os 12 passos. Pausa para o chá de canela. Terapia do espelho. Todos os encontros o mesmo ritual. Soa chato. É reconfortante. Aqui tudo funciona. Sempre no mesmo dia. No mesmo horário. Estabilidade. Quando chega o momento de falar, hesito. O nome terapia do espelho não é apenas metafórico. Você encara a si mesmo. E não é fácil admitir suas fraquezas. Nem mesmo quando isto é o que se espera de você. O autojulgamento é o que amedronta. Expor para si mesmo o que lhe aflige. Não é fácil. Exaltar as falhas é desalentador. É libertador. Depois das primeiras palavras me livro das amarras da vergonha. Falar sobre a atormentada semana a exorciza. Me dá um pouco de ânimo para viver. Ao menos pelo dia seguinte. É isso. Uma meta. Um dia de cada vez. Um desejo. Vinte e quatro horas de paz e serenidade para todos.

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